Estado da Baviera, Alemanha, 5 de dezembro de 1901, na pequena Würsburg, a família Heisenberg comemorava o nascimento de um filho, Werner, que viria a se tornar um dos mais eminentes cientistas de sua época.

Werner Heisenberg, foi um físico teórico laureado com o Prêmio Nobel de Física de 1932 pela sua importantíssima contribuição na criação da mecânica quântica; a aplicação de suas descobertas teve enorme impacto no pensamento científico e mudou radicalmente a maneira como o homem passou a entender certos fenômenos.

Heisenberg trabalhou com muitos expoentes da ciência, entre eles Max Born e Pascual Jordan, com quem estabeleceu as bases da formulação matricial da mecânica quântica em 1925 e mais tarde, trabalhou com Niels Bohr em Copenhague. Extrapolou, em muito e brilhantemente, os limites da sua própria área do saber1.

Mas uma pergunta emerge neste momento. O que a física quântica tem a ver com neuropsicologia? A princípio pouco; de fato, o mais relevante nessa possível, porém remota, congruência é a contribuição de Heisenberg sobre a importância dos estudos realizados para além dos limites da sua própria ciência; ou seja, é exatamente nessa interface que se encontra um terreno bastante fértil onde novas descobertas e ampliação dos saberes existentes está sendo mais possível.

Um exemplo concreto dessa interface, a meu ver, reside na própria origem da psicologia, cujas raízes se encontram na filosofia. É certo que a filosofia é a matriz de todas as ciências, mas pelo fato de a ciência “psicologia” ser uma das mais modernas, é mais fácil estabelecer suas origens e história. 

Nela, no quarto final do século XIX, os primeiros psicólogos, dentre eles Wilhelm Wundt, estabeleceram a gênese de experimentos sistematizados nessa nova ciência. Já naquele período, a psicologia cunhava diferentes vertentes que floresciam cada uma a seu modo. Nesse cenário científico e filosófico, Sigmund Freud, em 1882, dava os primeiros passos na elaboração da sua Teoria Psicanalítica e nos primórdios do século XX, Ivan Pavlov, criava as bases para o behaviorismo, com seus experimentos sobre o condicionamento animal. Foi ao longo desse novo século que a psicologia floresceu, se solidificou como ciência e protagonizou a criação de várias correntes de pensamento2. 

Embora possamos entender que a psicologia, a exemplo de outras ciências, tenha suas raízes na filosofia, é fato que as áreas das ciências biológicas, flertou desde do início e com grande entusiasmo com essa nova e atraente ciência que tinha como objetivo a compreensão dos fenômenos, muitas vezes intangíveis, da psiquê humana, da natureza do pensamento e da compreensão do comportamento do indivíduo3; Pavlov foi um fisiologista e Freud um neurologista2.

Foi nessa interface entre os fenômenos subjetivos da mente humana e os objetivos da neuroanatomia e da neurofisiologia – comportamento e sua base neurobiológica - que a neuropsicologia despontou, num esforço necessário para que os psicólogos, psiquiatras, neurologistas e pesquisadores científicos pudessem estabelecer e entender a relação entre o comportamento humano e o cérebro e, finalmente, responder satisfatoriamente aos questionamentos que já eram forjados desde a antiguidade. 

Essa, até então, nova vertente da psicologia logo se tornou um importantíssimo instrumento para o subsídio dos diagnósticos diferenciais, bem como para orientação e tratamento em diversos processos de reabilitação; além, claro, instrumento de métrica nas áreas de pesquisa científica e acadêmica. 

A posição relevante da neuropsicologia para a ciência, só foi possível, graças ao ímpeto, como enfatizado por Heisenberg, de ir além dos limites da sua própria ciência. A neuropsicologia, segundo Pinheiro4, pode ser considerada uma ciência do século XX, embora com raízes fincadas em séculos anteriores. Foi então com o intuito de fornecer subsídios para uma melhor compreensão das mudanças e alterações comportamentais e cognitivas advindas de lesões cerebrais, que a neuropsicologia se tornou uma imprescindível área do saber e um valioso instrumento para se conhecer o funcionamento do cérebro no estado normal.

A evolução da ciência no século XX e nas primeiras duas décadas do século XXI foi sem precedentes na história. O conhecimento científico acumulado em séculos passados subsidiou o desenvolvimento de novos saberes que, muitas vezes, se materializaram em novas tecnologias e que, deste modo, subsidiou e tem subsidiado o vertiginoso crescimento da ciência nesse período.

No dinâmico contexto da ciência moderna, é imprescindível substanciar o olhar de Heisenberg e para isso, os limites de um determinado saber parecem não mais existir. Para a neuropsicologia, abordada de modo particular neste artigo, a incorporação de saberes até então distantes da formação acadêmica e da atuação profissional, é fundamental para que se obtenha um entendimento ímpar de cada estudo realizado e de cada caso avaliado.

O aprofundamento nos conceitos da neuroanatomia e da neurofisiologia, é imperativo. Não basta apenas conhecer de modo geral as estruturas encefálicas, é necessário saber qual sua cito e histoarquitetura; como se estabelece o neurodesenvolvimento, desde as primeiras etapas do processo de neurulação até a fase adulta e, não menos importante, como esse cérebro adulto envelhece; como se organizam e se conectam os tratos cerebrais e toda “circuitaria” subjacente; qual e como um determinado neurotransmissor atua em cada região do encéfalo e quais subsídios genéticos interferem nessa formação neurológica. 

Desse modo, é fundamental para o neuropsicólogo do século XXI que não se restrinja apenas a estudar e conhecer os constructos, as abordagens tradicionais e os instrumentos próprios da sua ciência. Deve, de fato ir além; saber, por exemplo, como a base genética, fatores gestacionais e ambientais, determinarão o curso do neurodesenvolvimento; como as alterações, muitas vezes sutis, nos fatores que determinam o curso natural de desenvolvimento do sistema nervoso poderá, com grande probabilidade, resultar em um padrão de mudanças comportamentais, de habilidades, de desempenho cognitivo e de uma performance muitas vezes desviante do esperado para a idade, condição sócio-econômica e nível educacional da pessoa.

Embora historicamente a psicologia, em oposição ao determinismo genético, tenha consolidado suas ideias na concepção geral de que o ambiente era o elemento definidor do comportamento, atualmente já é amplamente aceito, principalmente no meio acadêmico e científico, que aspectos da cognição e comportamento humanos são resultantes de uma interação da base genética e neurobiológica do indivíduo com experiências vividas no ambiente ao qual ele é exposto ao longo de sua vida. 

Esse entendimento fica bem claro ao analisarmos um importante e seminal artigo5; nesse documento, os autores constroem uma abordagem que parece apaziguar a longa batalha entre vertentes opostas, “nature” versus “nurture”. Cradock e Owen apresentam já nas primeiras páginas, uma solida fundamentação que sustenta o argumento de que as abordagens tradicionais e classificações psicopatológicas são inadequadas, principalmente ao olharmos para os recentes achados da genética. Diz os autores, ainda nas primeiras linhas do resumo introdutório:

“Estudos genéticos recentes reforçam a visão de que as abordagens atuais para o diagnóstico e classificação de importantes doenças psiquiátricas são inadequadas. Essas descobertas desafiam a distinção entre esquizofrenia e transtorno bipolar, e sugerem que mais atenção deve ser dada ao relacionamento entre as psicoses funcionais e distúrbios do neurodesenvolvimento, como o autismo.” (CRADOCK e OWEN, 2010, tradução nossa).

Cradock e Owen hipotetizaram um modelo complexo que de maneira inovadora e, talvez, visionária rompe as fronteiras estanques de saberes específicos sobre os transtornos mentais; integram, nesse modelo epistemológico, os segmentos intervenientes na constituição psicopatológica, de modo a construir um continuum bem metodizado que parte de variantes estruturais do DNA como determinantes da variação genética, seguindo dessa variação à constituição dos sistemas biológicos e módulos neurais, chegando finalmente aos domínios sintomatológico das síndromes psiquiátricas. Os autores vão além, esse modelo distribui horizontalmente, os gradientes do neurodesenvolvimento e afetivos em cada grupo das psicopatologias; estabelecem, uma relação estocástica em cada nível de modelo, apresentando profunda relação entre a genética e o comportamento.

O modelo apresentado por esses autores estabelece um intima relação entre a genética e a psicopatologia; entretanto, é importante visualizar os níveis intermediários desse cânone; ou seja, de quanto a própria genética influencia a constituição de um cérebro durante as várias etapas do neurodesenvolvimento e quanto essa influência pode resultar um cérebro mais ou menos propenso a um funcionamento sutilmente diferente.

Exemplo, dentre vários, dessa reflexão é a fase de sinaptogênese do neurodesenvolvimento. Tanto a formação quanto a manutenção de sinapses requerem um grande empenho biológico, com a produção em quantidade e qualidade adequada de neurotrofinas, que são proteínas que induzem o desenvolvimento e a sobrevivência, das conexões (sinapses) entre os neurônios; por serem proteínas, essas moléculas são o resultado da expressão dos genes. Importante ressaltar que esse importantíssimo mecanismo sinaptogênico se constitui no subsídio funcional da cognição humana e estará presente desde a fase intrauterina do neurodesenvolvimento até os processos funcionais da percepção, formação de memória e consequentemente da aprendizagem, durante toda a vida de uma pessoa.

De modo complementar, porém sob um ponto de vista mais sutil, é possível ilustrar essa linha de pensamento ao analisarmos três artigos6,7,8, que apresentam o papel da enzima Catecol O-Metiltransferase (COMT) na modulação da memória de trabalho e foco atencional.  A COMT é uma das enzimas que degrada catecolaminas, como a dopamina; essa enzima é expressa por um gene de mesmo nome (COMT), localizado no braço longo do cromossomo 22 (22q12). O alelo COMT apresenta um polimorfismo em uma região específica, códon 158 (val158met). O alelo Met está associado com baixa atividade da enzima COMT, com essa menor expressão enzimática, a dopamina terá uma ação mais duradora. Já o alelo Val se relaciona a uma maior atividade dessa enzima, o que faz com que a dopamina seja degradada mais rapidamente, permitindo que esse neurotransmissor atue por um menor tempo na fenda sináptica. Dependendo da combinação alélica de uma pessoa, haverá um desempenho diferente em tarefas de avaliação de memória de trabalho e níveis de ansiedade. O alelo Met está associado a um melhor desempenho em memória de trabalho, porém com níveis mais elevados no que se refere à ansiedade; o alelo Val, por sua vez, está associado com um pior desempenho nas tarefas que exijam memória de trabalho. Esses estudos fazem ainda uma relação bastante significativa entre as variantes desse alelo e transtornos psiquiátricos, como o TDAH.

Isto posto, é fácil perceber que alterações genéticas ou mesmo variações naturais poderão determinar a formação de cérebros com características peculiares, com manifestações nos aspectos cognitivos e comportamentais do sujeito. Refiro-me, também, às síndromes neuro genéticas – p.e. Williams-Beuren e Down -, cuja patofisiologia requer a compreensão e conhecimento das alterações genéticas, do neurodesenvolvimento e das manifestações comportamentais e cognitivas esperadas para cada síndrome, abarcadas no conceito de endofenótipo9,10. Outra dimensão nosológica onde essa percepção se apresenta de modo factível é a etiologia dos quadros demenciais. 

Entretanto, vale ressaltar que, em alguns transtornos mentais cujas manifestações comportamentais apresentam padrões menos evidentes, dificilmente serão percebidos de maneira clara por uma avaliação clínica. Recursos diagnósticos de métricas funcionais de grande sensibilidade e acurácia, para dar suporte a diagnósticos diferenciais ou de exclusão, serão necessários para o entendimento do quadro, principalmente no que se refere aos endofenótipos cognitivos e como as informações são conduzidas, processadas e as respostas adaptativas elaboradas; esses mecanismos são melhores e mais facilmente identificados por intermédio de avaliações neuropsicológicas. 

Deste modo, é imprescindível que os profissionais da saúde mental, em particular os psicólogos e os neuropsicólogos, elaborem a construção do entendimento sobre a importância dos conhecimentos de genética na constituição do seu arcabouço acadêmico para uma atuação profissional competentemente baseada em evidências.

Finalizo este texto, com as palavras de Heisenberg, que creio, tem norteado muitas linhas de pesquisas nos séculos XX e XXI, e que tem sido o animus novandi de importantes descobertas científicas.

“É bastante provável que na história do pensamento humano os descobrimentos mais fecundos ocorram, não raro, naqueles pontos onde convergem duas linhas diversas de pensamento. Essas linhas talvez possuam raízes em segmentos bastante distintos da cultura humana, em tempos diversos, em diferentes ambientes culturais ou em tradições religiosas distintas. Dessa forma, se realmente chegam a um ponto de encontro – isto é, se chegam a se relacionar mutuamente de tal forma que se verifique uma interação real-, podemos esperar novos e interessantes desenvolvimentos a partir dessa convergência.” Wener Heisenberg. (1901-1976)


Referencias:

1 – LEITE, Anderson; SIMON, Samuel. Werner Heisenberg e a Interpretação de Copenhague: a filosofia platônica e a consolidação da teoria quântica. Sci. stud.,  São Paulo ,  v. 8, n. 2, p. 213-241,  June  2010 .

2 - COLLIN, C. The Psychology Book. London: Dorling Kindersley. 2011.

3 - How does the APA define "psychology"?. Associação Americana de Psicologia. Psychology is the study of the mind and behavior. https://www.apa.org/support/about-apa#:~:text=How%20does%20the%20APA%20define,to%20care%20for%20the%20aged. Access in 2020/08/22.

4 - PINHEIRO, Marta. Aspectos históricos da neuropsicologia: subsídios para a formação de educadores. Educ. rev.,  Curitiba ,  n. 25, p. 175-196,  June  2005 . 

5 - CRADDOCK, N., & OWEN, M. J. (2010). The Kraepelinian dichotomy - going, going... but still not gone. The British journal of psychiatry : the journal of mental science, 196(2), 92–95.

6 - STEIN, D. J.; NEWMAN, T. K.; SAVITZ, J.; & RAMESAR, R. (2006) Warriors versus Worriers: the role of COMT gene variants. CNS Spectrum, 11, 745-748.

7 - DICKSON, D. & ELVEVAG, B. (2009). Genes, cognition and brain through a COMT lens. Neuroscience, 164, 72-87.

8 – CRADOCK, N.; OWEN M.J., O'DONOVAN M.C. The catechol-O-methyl transferase (COMT) gene as a candidate for psychiatric phenotypes: evidence and lessons. Molecular Psychiatry. 11 (5): 446–58. 2006

9 - MARTIN, Maria A. F. Orientações para promoção de saúde mental e qualidade de vida em pais e seus filhos com Síndrome de Williams [livro eletrônico] / Maria Aparecida Fernandes Martin, Maria Cristina Triguero Veloz Teixeira, Luiz Renato Rodrigues Carreiro. -- São Paulo : Memnon, 2014.

10 - BISHOP, D. V. M. & RUTTER, M (2009).Neurodevelopmenal disorders: conceptual issues. In M. Rutter, D. V. M. Bishopt, D. S. Pine, S. Scott, J. Stevenson, E. Taylor & A. Thapar (Orgs.) Rutter’s child and adolescent psychiatry (5a. ed., pp. 32-41). Oxford: Blacwell.


Sobre o autor

Marco Antonio Gomes Del’ Aquilla. BSc, MSc, PhD

Neurocientista, Mestre pelo Programa de Distúrbios do Desenvolvimento - UPM e Doutor pelo Programa de Psiquiatria e Psicologia Médica – EPM/UNIFESP. Pesquisador colaborador do Laboratório Interdisciplinar de Neurociências Clínicas e do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes. Professor Titular da Universidade Paulista. Professor Convidado de Pós-graduação Lato e Stricto Sensu no Centro de Estudos em Terapia Cognitivo-Comportamental – CETCC; Fundação São Paulo; Núcleo de Formação Profissional em Psicopedagogia e Neuroaprendizagem.

Contato: delaquilla@yahoo.com

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